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Duas trans chamadas Bárbara e a luta pela adequação de registro do nome e gênero

“A certeza que eu sempre tive e que a sociedade me negou, agora foi confirmada pela justiça. Essa decisão só reafirma que eu nunca estive enganada. Eu sou uma mulher e tenho esse direito”, comemora Bárbara de Queiroz Lima, 40 anos. Na última semana, ela recebeu a ligação da Defensoria Pública do Estado do Ceará, comunicando que a justiça deferiu o pedido, realizado em setembro de 2014, para que seja adequado o registro de nascimento em relação ao nome e ao gênero.

Na sentença, a juíza da 2ª Vara de Registros Públicos, Silvia Soares de Sá Nobrega, determina que seja expedido mandado ao Cartório para que retifique o nome que consta na certidão de nascimento e que nela também conste que se trata de pessoa do SEXO FEMININO. Essa foi a primeira decisão favorável à Defensoria Pública do Ceará, no tocante a redesignação de gênero no documento, as demais só haviam autorizado a mudança do nome no registro de nascimento.

“Essa ação trata, sobretudo, do resgate da dignidade humana. Essa conquista para nós representa muito, pois não é apenas a mudança do nome no registro civil, mas o reconhecimento da identidade de gênero, quebrando preconceitos e barrerias importantes que muitas vezes impedem o acesso a outros direitos. O Estado passa a compreender no plano formal, algo que já ocorre no plano fático. É super importante que essa sentença favorável possa gerar informação para a sociedade. A identidade de gênero é como cada um se vê, se eu me vejo mulher eu tenho direito de ser mulher, independente do meu corpo ou da minha opção sexual. O acolhimento a essa ação, representa o respeito à diferença e ao direito de cada um ser o que quiser, na sua integralidade”, pontua a defensora pública geral, Mariana Lobo, titular do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Ceará.

A petição, ajuizada pelo Núcleo de Direitos Humanos, foi fundamentada no conceito de transexualidade, tratando do direito à identidade pessoal (direito ao nome) diante da identidade de gênero, com base no posicionamento/jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, além de demonstrar a falta de necessidade de cirurgia para o reconhecimento do direito à identidade pessoal e a ausência de prejuízo à terceiro no deferimento da adequação do registro civil à identidade de gênero. A Defensoria Pública também juntou aos autos: fotos, depoimentos, documentos profissionais, certidões negativas da Justiça, do Tribunal Regional Eleitoral, da Receita Federal, da Auditoria Militar e dos Cartórios de protestos de títulos, além de laudos, receituários médicos, clínicos e psiquiátricos que comprovam a identidade de gênero de Bárbara e que ela assim já é reconhecida no meio social em que vive.

A ação cita inclusive a jurisprudência do voto proferido no Recurso Especial (1008398-SP/2007) sobre o tema, no qual a ministra-relatora do Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrigui, acolhe o direito de adequação ao sexo, uniformizando a interpretação da Lei de Registros Públicos. “A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade”, afirma a ministra. Ainda de acordo com a decisão do Superior Tribunal de Justiça: “o referido ato cirúrgico de redesignação sexual, por sí só, não modifica o sexo de uma pessoa…hoje com o desenvolvimento científico e tecnológico, existem vários outros elementos identificadores do sexo, razão pela qual a definição do gênero não pode mais ser limitada somente ao sexo aparente.”.

Ainda segundo a petição, o próprio Conselho Federal de Medicina- CFM, por meio da Resolução 1652/2002, artigo 3º, reconhece que a definição de transexualidade não implica na necessidade de cirurgia. De acordo com o Conselho, o desconforto com o sexo anatômico natural, o desejo expresso de eliminar as genitais, a permanência desses distúrbios de forma continuada por no mínimo dois anos e a ausência de outros transtornos mentais configuram a transexualidade.

No caso de Bárbara, sua feminilidade foi externada desde a primeira infância, ainda com 4 anos de idade, quando ela já preferia estar em meio às meninas, suas bonecas, com laços de fita nos cabelos.

“Meus irmãos sempre preferiam nas férias sair com meu pai, passar o dia com ele na sua caçamba, eu por minha vez preferia ficar em casa com minha mãe e primas. Adorava os assuntos, risadas, tudo. Ficar com minhas amigas, brincar de casinha, bonecas, etc.”

Sem entender direito o que ocorria, ela rezava pedindo a Deus que a ajudasse a resolver o conflito entre o seu corpo masculino e a alma feminina. “Eu pedia muito a Deus, com 4 ou 5 anos, para amanhecer sem a minha genitália, quando eu acordava e via que isso não tinha ocorrido ficava decepcionada, triste e cabisbaixa”. A transexualidade de Bárbara acentuou-se na adolescência, com todas as implicações e dúvidas, típicas desta fase da vida.

“Aos 13 anos comecei a tomar hormônios. Nesta época, nós mulheres trans só tínhamos umas às outras e tudo tinha que ser escondido. A partir daí, começaram os dissabores, chacotas, apontamentos, piadinhas. Andar no centro, no início dos anos 90 era terrível: gritos, vaias, palavrões, por conta dessa doença que é o preconceito, tive ceifadas muitas alegrias e o progresso no colégio, tive que parar antes de terminar, era muito difícil. Só passei a ter acompanhamento com um endocrinologista no ano 2000. Pra mim, sempre foi um sofrimento horrível ter essa identidade de gênero, uma espécie de um câncer, passei inúmeros constrangimentos ao longo da vida por causa disso”, relembra a trans.

Após superar as dificuldades e a marginalização, com o apoio dos pais, ela retomou os estudos e entrou em acordo com o curso para que seu nome de nascimento fosse omitido e ela reconhecida como mulher. “Tudo comigo foi muito rápido e intenso, eu sempre tive certeza do que eu sou. Apesar disso, tinha que ficar me explicando, falando sobre minha sexualidade, em situações constrangedoras quando me pediam os documentos no aeroporto, numa blitz ou mesmo na hora de tirar a carteira de motorista. Há uma preguiça coletiva, religiosa e política, inclusive, de se informar sobre a transexualidade e entender a questão de gênero. Eu espero que isso mude mas até hoje o preconceito é muito forte”, conta Bárbara.

A trans hoje trabalha na empresa do pai, já foi casada por 10 anos e voltou a morar no bairro onde nasceu e se criou, onde é querida e respeitada por todos. A notícia, recebida na última semana, de que vai ter seu gênero e nome reconhecidos no registro de nascimento trouxe a ela a esperança de viver uma nova etapa. “Parece um sonho. É uma alegria tão grande, que não tem nada que eu fale que possa expressar tudo o que estou sentindo. Espero que o meu caso sirva de exemplo para que outras mulheres trans possam também lutar pelos seus direitos e para que haja mais informação sobre esses direitos.”

A conquista de Bárbara Lima, agora, inspira uma outra trans chamada Bárbara Gadelha.

“O que me faz ser mulher não é o que eu visto, não é o meu corpo, muito menos o que eu represento para os outros. O que me faz ser mulher é a minha mente e minha essência”. Fala a transexual Bárbara Gadelha, 31 anos, que nesta semana deu entrada no processo de retificação do registro civil, fazendo constar o nome de uso social e o reconhecimento do gênero, com o apoio do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Estado Ceará.

Aos 22 anos, Bárbara iniciou o tratamento hormonal para transição de gênero. Trabalhando desde os 18 para conquistar sua independência, o sonho foi viabilizado após sua ida à Argentina, onde mora há nove anos. “Eu nunca tive apoio da minha família, então somente eu poderia lutar pelo meu sonho. Quando completei a maioridade foi a minha oportunidade de ir atrás do que eu realmente queria”, destaca a tradutora.

Nascida em João Pessoa, na Paraíba, a jovem decidiu retornar ao Brasil para iniciar o processo de mudança de gênero e nome. “Eu e meu amigo procuramos na internet onde seria possível realizar a mudança, vimos que na Defensoria Pública haviam casos de sucesso. Casos parecidos com o meu. Foi então que comprei a passagem e vim para cá. Só saio daqui com meus documentos em mãos”, destaca.

“As ações de mudança de gênero são uma demanda diretamente ligada ao direito à identidade de gênero. A demanda é de certa complexidade, mas o atendimento é feito diretamente no Núcleo e encaminhado o demandante para relatório do setor de psicossocial da Defensoria Pública para elaboração de relatório que deverá instruir a ação”, explica a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública, Sandra Moura de Sá.

Nome Social

O nome “Bárbara” foi escolhido rapidamente. “Na realidade, quando mudei para a Argentina, decidi colocar meu nome como “Barbie”. Lá é um nome comum e é como se fosse apelido para “Bárbara”. Chegando ao Brasil, as pessoas me chamam de Bárbara, mas se eu conseguir registrar o nome Barbie, seria um sonho”.

A mudança do nome acompanha uma grande expectativa. A jovem fala que a sensação de a chamarem pelo nome é indescritível. “Para todo mundo é comum isso, mas pra mim é um sonho. Na realidade, tenho dois sonhos na vida. Um é de terminar minha faculdade de Turismo, que tive que trancar, e fazer a alteração do meu nome nos meus documentos. Hoje eu tenho um trabalho que eu amo e tenho um namorado perfeito. Quando conseguir finalizar isso, eu vou ser a mulher mais feliz do mundo!”, se orgulha.

Gênero

Questionada sobre sua relação com seu corpo, Bárbara diz que está muito satisfeita. A mulher fala ainda que, hoje, não vê a necessidade de realizar a cirurgia de mudança de sexo. “Eu não acho que seja necessário, mas prefiro não sair por ai dizendo que nunca vou fazer. A gente amadurece e acaba criando novas opiniões sobre as coisas. Mas hoje não sinto que seja preciso”.

Saiba Mais:

Nos anos de 2015 e 2016, o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública, ajuizou cerca de vinte e cinco ações de mudança de nome no registro de nascimento.

Serviço:
Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC)
Endereço: Rua Nelson Studart, S/N, Eng. Luciano Cavalcante
Tel.: (85) 3101.3434 / 3278.3556.

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Essa matéria faz parte de uma série de reportagens produzidas pela Defensoria Pública do Ceará relatando casos, acompanhados pela instituição, de ausência ou retificação do registro civil.

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